Home - Opinião - 2020, o ano de todos os perigos (e de todas as esperanças)*. Autor: Luís Filipe Reis Torgal

2020, o ano de todos os perigos (e de todas as esperanças)*. Autor: Luís Filipe Reis Torgal

Impõe-se iniciar este texto com a evocação de um evento reluzente do passado que as escolas atuais, absortas com a crise pandémica e com escabrosos pedagogismos, quase obliteraram. Completaram-se 200 anos sobre a Revolução Liberal Portuguesa, que despertou no Porto, a 24 de agosto de 1820. Nesse dia, os conspiradores do Sinédrio (sociedade secreta que agregava juristas, comerciantes e oficiais militares), conluiados com militares e populares, destituíram o tirano inglês, general Beresford, e gritaram «vivas a El-Rei D. João VI» ausente no Brasil. A proclamação ao país lida pelos revoltosos clamou pela formação de um Governo Provisório e reivindicou a preparação pelas Cortes de uma Constituição, «cuja falta é a origem de todos os nossos males».

As Cortes Constituintes da Nação, guiadas pela «razão» e a «justiça», aprovaram, em 1822, o mais antigo texto constitucional português e, porventura, o mais democrático até 1976. Tal documento consagrou, pela primeira vez na história de Portugal, a liberdade de expressão do pensamento, a igualdade perante a lei, a admissão de todos os portugueses aos cargos públicos, sem outra distinção que não fosse a dos seus talentos e virtudes, a divisão tripartida e a independência dos poderes políticos bem como a soberania popular, a qual procedia de um sufrágio masculino mas não censitário para eleger os deputados destinados às Cortes. Proibiu ainda a prisão sem culpa formada, baniu todos os tipos de torturas e penas cruéis ou infamantes e propiciou a criação de escolas primárias, em todos os lugares do reino, destinadas a ensinar as crianças de ambos os sexos a ler, escrever e contar.

Com esta revolução e Constituição, no domínio político, Portugal resgatou a independência, adquiriu um fôlego regenerador e acertou o seu relógio pelos países mais progressistas do mundo. Porém, a transição do país da monarquia absoluta para a monarquia constitucional e, depois, para o liberalismo democrático enquadrado por um Estado-Providência foi lenta e difícil, ritmada por progressos e retrocessos ocorridos ao longo dos séculos XIX e XX.

É que a História não tem um progresso retilíneo. Como sustentou o filósofo Giabattista Vico, na obra Princípios de uma Ciência Nova (1725), o processo civilizacional evolui em espiral, com recuos e avanços, passando por pontos idênticos, mas estruturalmente diferentes. Neste sentido, bem podemos subscrever as duas frases impressivas que a escritora Margaret Atwood verteu para o epílogo do seu romance distópico Testamentos (2020): «A História não se repete, mas rima […]. Temos que continuar a relembrar as manobras erradas do passado, para não as repetirmos».

Hoje, estamos «no olho do furacão», imersos em plena crise global, atolados numa das maiores encruzilhadas da História. Muitos afiançam que a humanidade enlouqueceu e caminha, vertiginosamente, para a escuridão. O historiador mediático Yuval Noah Harare, no livro 21 Lições Para o Século XXI (2018), notou que vivemos um momento niilista de descrença, desilusão, pânico e raiva. Os desafios que se apresentam à humanidade são gigantescos: o colapso ambiental, o terrorismo, o nacionalismo tribal e isolacionista, a disrupção tecnológica, a globalização desregulada, os riscos de uma guerra nuclear, a(s) pandemia(s), o consumismo frenético, a «civilização do espetáculo» e das redes sociais desregulamentadas (que normalizou as fake news e ajudou a fabricar chefes populistas estapafúrdios como Berlusconi, Trump ou Bolsonaro), o fluxo massivo de pessoas refugiadas e deslocadas (segundo os números da ONU, foram mais de 80 milhões, em 2020, muitas delas nunca vão conseguir ser acolhidas e integradas em nenhum país), o ressurgimento dos impérios (China, Rússia, Turquia, Irão…), a vigilância totalitária e manipuladora dos cidadãos por Governos e empresas (veja-se como a Cambridge Analytica influenciou o Brexit ou a eleição de Trump, em 2016), os fundamentalismos religiosos, a pulsão para os populismos radicais. Todos estes problemas ameaçam os valores inalienáveis da democracia, da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

O tempo esgota-se… E só existe uma via possível para as comunidades humanas empreenderem «reformas disruptivas», racionais e criativas que não subvertam os valores essenciais das sociedades abertas e as salvem de fluir para um mundo de trevas. Que via é essa? Superar os desafios globais atrás enunciados através de ações respaldadas em consensos alargados e numa solidariedade global. Assim pensam as vozes humanistas. Recordemo-nos que Charlie Chaplin tinha já apontado este caminho num pungente discurso proferido no final do seu memorável filme tragicómico «O Grande Ditador», estreado em 1940, em plena II Guerra Mundial: «Lutemos, agora, para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, suprimir a ganância, o ódio e a prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à felicidade de todos nós. […] Em nome da democracia, unamo-nos».

Jamais podemos ceder à insensatez de depositar os nossos destinos nas mãos de demagogos nacionalistas, os quais persistem em recorrer a argumentos falaciosos e divisionistas para nos prometerem um Admirável Mundo Novo. A História de um passado demasiado recente ensinou-nos que as ambições megalómanas desses demagogos e dos movimentos radicais que os enquadraram conduziram a humanidade a derivas totalitárias, a guerras brutais, ao holocausto, ao holodomor e ao gulag.

O mito grego de Pandora instruiu a humanidade a nunca perder a Esperança. Pois bem, hoje, há sinais de uma nova Esperança: o presidente autocrata, Donald Trump, foi «despedido» pelo povo dos EUA e, a partir de janeiro de 2021, serão ativados planos de vacinação contra a Covid-19.

Feliz Natal e próspero Ano de 2021.

(*) Publicado como editorial do Mega 5, jornal do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, dezembro de 2020

Autor: Luís Filipe Reis Torgal

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