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Rir às gargalhadas com… Aquilino Ribeiro! Autor: Renato Nunes

Não sei se algum dia te disseram, mas existem livros que nos acompanham ao longo de toda a vida. Hoje vou falar-te de um desses livros, que, imagina, li quando tinha mais ou menos a tua idade, quando frequentava o 6.º ano. Sim, pode não parecer, mas eu também já tive a tua idade!

Durante a minha infância, não existiam livros em casa dos meus pais. No entanto, todas as semanas, à sexta-feira, uma carrinha vermelha repleta de livros para emprestar parava mesmo em frente à capelinha da minha aldeia nativa, na Beira Alta. E passados alguns minutos, num tempo em que também havia fome e roupas esfarrapadas, todos os meninos vinham para casa com as mãos carregadas de alegria! Ainda hoje, quando vou na estrada e vejo uma carrinha vermelha pressinto os meus olhos brilharem, só de pensar nas fantásticas aventuras que vivi…

Confesso-te que durante a meninice sempre foram as imagens que mais me atraíram. Parecia-me que eram elas que davam vida às palavras e, muitas vezes, passava horas a contemplar os desenhos impressos nas páginas, a tentar imaginar o que estaria a acontecer naquele preciso momento, nesse outro mundo, onde tudo era possível. Talvez hoje te aconteça o mesmo, não?!

Naquele dia, já lá vão mais de 20 anos, foi a capa de um livro de folhas amarelecidas pela passagem do tempo que me despertou a atenção. No canto inferior direito da imagem, estava desenhado um animal, que aparentava ser uma raposa. Observando com mais atenção, conseguíamos perceber que o pobre bicharoco estava a sofrer muito, pois tinha a patinha esquerda presa numa armadilha utilizada pelos caçadores. Mesmo à sua frente, dentro daquilo que indiciava ser um galinheiro, vários animais pareciam rir-se desalmadamente da situação do desgraçado de quatro patas. Dentro da carrinha vermelha, perante aquela imagem, dei por mim a querer saber tudo o que teria acontecido, enquanto maldizia os restantes bichos que tanto se riam do sofrimento alheio. É curioso, mas durante muitos anos, sempre que entrava no galinheiro que existia no quintal dos meus pais, olhava para as galinhas e vinha-me à memória esse episódio!

Lembro-me, ainda, que levei o livro para casa no próprio dia em que o encontrei e não descansei enquanto não cheguei à última página. Foi assim que descobri as maravilhosas aventuras da raposa Salta-Pocinhas, que, vê bem, mais de duas décadas depois continuam a fazer-me rir às gargalhadas! E já vais perceber o motivo!

O livro em questão intitula-se Romance da Raposa e foi uma prenda que o seu autor (Aquilino Ribeiro) colocou no sapatinho do primeiro filho, Aníbal, no Natal de 1924. Ou seja, foi há quase 95 anos que Aquilino Ribeiro deu aquela prenda ao seu filho, que à época tinha 10 anos. Que magnífico presente!

Logo na primeira página, o autor daquelas fantásticas aventuras começou por confessar que iria contar a história de uma “raposeta pintalegreta, senhora de muita treta”. Uma raposa que, vais agora sabê-lo, já há três dias e três noites vagueava pelo bosque em busca de alimento, não conseguindo, no entanto, caçar mais do que uns míseros gafanhotos. Uns bichinhos que mal lhe tapavam o buraco de um dente, quanto mais conseguirem forrar-lhe o insaciável estômago!

A raposa Salta-Pocinhas tinha saído da casa dos pais, precisamente quando completou 18 meses. Algum tempo antes, a mãe viera dizer-lhe que, tal como já tinham feito os irmãos, era chegada a altura de partir, de fazer-se à vida, pois já tinha bom corpo para governar-se a si mesma. Salta-Pocinhas choramingou, mas não teve outro remédio senão partir.

Mais tarde, enquanto deambulava pelo bosque em busca de alimento, a nossa heroína encontrou o seu irmão Pé Leve e implorou-lhe comida. Todavia, o sábio raposo, que tinha fama de bom salteador, não se deixou levar pela manha da irmã e limitou-se a apresentar-lhe, apressadamente, uma solução. Falou-lhe num certo texugo Salamurdo, que teria roubado uma pata. Se Salta-Pocinhas fosse pedir ao texugo, talvez ele pudesse ajudá-la a matar a fome…

Lá partiu a Salta-Pocinhas em busca do petisco desejado, não hesitando em pedir informações aos animais que ia encontrando pelo caminho. Falou com uma fuinha, um gato bravo e até mesmo um urso foragido do circo, que, esfomeado, aguardava de pé, junto a um castanheiro, na esperança de que alguma castanha lhe caísse em cima da cabeça… ou algum animal mais incauto lhe fosse parar às poderosas garras. Ufa!

Informação atrás de informação, cheiro após cheiro e eis que a nossa raposinha, ansiosa por deitar o dente a uma parte da famosa pata roubada, lá chegou à porta da casa do texugo Salamurdo. Começou por chamá-lo educadamente, voltou a chamar, implorou, mas nada. Texugo, nem vê-lo! Desatou, então, a maltratar o bicho: “ – Pai texugo, narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata! Larga a pata!… a pata!!!”. Mais algumas lamúrias, renovados pedidos de comida e o texugo lá acabou por responder, maltratando a raposa e acusando-a de cheirar mal. Sentindo-se atingida na sua própria honra (onde já se vira uma raposa com a sua magnífica plumagem cheirar mal?!), a Salta-Pocinhas voltou novamente à carga: “Texugo narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata!”. Tanto chateou o carnívoro, tanto lhe azucrinou os ouvidos que o texugo, maldizendo a sua sorte, decidiu sair de casa e apresentar queixa ao vice-rei daqueles bosques, o temível lobo D. Brutamontes, nomeado pelo rei dos animais, o imperador leão, para governar as selvas da Beira Alta. Partiu então o texugo e a raposa esfregou as mãos de contente ao ver a toca, finalmente, à sua inteira disposição.

Salta-Pocinhas não se fez rogada e entrou rapidamente na casa alheia. Como não encontrou a desejada refeição, decidiu deixar um belo “presente” na cama do texugo! Depois, pé ante pé, lá foi ela, sorrateiramente, atrás do bicharoco, conservando sempre a necessária distância de segurança. Finalmente, quando chegaram ao abrigo do terrível lobo D. Brutamontes, a raposa viu o texugo entrar e permaneceu escondida no exterior, de ouvido bem apurado a tentar perceber o que se passava lá dentro. Foi assim que descobriu o mau humor do lobo, agravado pela terrível dor dos queixos de que padecia, talvez motivada por um daqueles dentes podres que possuía. Já fora da toca chegou-lhe ao ouvido o pedido do texugo para que o vice-rei D. Brutamontes castigasse a raposa atrevida. Aliás, deveria ter ficado preocupada ao ouvir a resposta do lobo, pedindo que o texugo lhe trouxesse ao covil a prevaricadora. Mas logo a seguir também deveria ter desatado a rir quando ouviu a resposta do lobo ao texugo Salamurdo, depois de este lhe ter dado um embrulho com bolotas. Eis a resposta do lobo: “Em suma aprecio muito a delicadeza, mas lá bolotas, como pão-de-ló, come-as tu e a tua avó”!

Lá se foi então o texugo Salamurdo pelo bosque fora e Salta-Pocinhas aproveitou imediatamente a brecha para entrar na toca do vice-rei. Tal foi a manha que usou no diálogo que conseguiu mesmo convencer o lobo que existia um remédio santo para a sua doença: bastar-lhe-ia, afinal, colocar sobre a cara, na parte dorida, uma pele de texugo acabadinho de esfolar! Claro está que o lobo não hesitou em sair imediatamente a correr atrás do texugo Salamurdo, em busca da miraculosa pele!

Assim que o vice-rei partiu, Salta-Pocinhas apressou-se a encher a pança com as iguarias que o lobo guardava no covil. Aquela ausência tinha vindo mesmo a calhar! O problema veio depois, como já deves estar a imaginar. Quando D. Brutamontes percebeu que tinha sido enganado, ficou extremamente irritado e declarou guerra à raposa Salta-Pocinhas, oferecendo uma recompensa a quem lha trouxesse, viva ou morta. Quanto a ela, lá estava, bem refastelada, na toca entretanto vaga do texugo Salamurdo. E assim ficou, até a mãe vir avisá-la do perigo que corria!

O que fará o vice-rei dos animais da Beira Alta, D. Brutamontes, para vingar-se da nossa raposinha? Conseguirá ela escapar às garras do terrível lobo tirano? Que fantásticas aventuras viveu, ao longo das 166 páginas do livro? Será que é a Salta–Pocinhas que está desenhada, com uma patinha presa numa armadilha, na capa do Romance da Raposa? Será que ela se casou e teve raposinhos? Como acaba, afinal, o romance da nossa heroína? As respostas a estas e outras perguntas terás de ser tu a encontrá-las, tal como eu as descobri há muitos anos atrás, quando folheei o livro de Aquilino Ribeiro, pela primeira vez na vida.

E quem era, afinal, o autor do romance que tantas gargalhadas tem, intemporalmente, provocado aos meninos, aos jovens e aos adultos que o lêem? Aquilino Ribeiro nasceu na freguesia do Carregal, concelho de Sernancelhe, terras da Beira Alta, no dia 13 de Setembro de 1885, e faleceu em Lisboa, no dia 27 de Maio de 1963. E teve uma vida repleta de aventuras!

O criador da raposa Salta-Pocinhas teve dois filhos: um chamado Aníbal e outro que recebeu o nome do pai, Aquilino. Quando lhe nasceu a primeira neta, em 1962, o romancista decidiu escrever uma obra e dedicar-lha — foi O Livro de Marianinha. Nesta obra, o autor das Beiras deixou uma importante mensagem à sua menina, em relação às histórias que criou: “Tenho esperança, Marianinha, que, algum dia, já eu longe do mundo, as leias e te façam sorrir”.

Por isso, agora vou fazer-te um pedido. Da próxima vez que entrares na magnífica biblioteca da tua escola, olha em frente e lembra-te que lá ao fundo existe um livro a aguardar-te ansiosamente, que te ajudará a rir às gargalhadas. Tal e qual como continua a fazer-me rir, mais de 20 anos depois da primeira vez que toquei o Romance da Raposa, na famosa Citroën vermelha da Fundação Calouste Gulbenkian, naquelas Terras da Beira Alta, por onde também um dia terá andado a nossa raposa Salta-Pocinhas…

27 de Maio de 1963: morte de Aquilino Ribeiro

No dia em que se completam 57 anos da morte do Mestre, deixo-vos dois parágrafos de um texto notável escrito por Aquilino, em 1927, após a morte da sua mulher Grete. Intitula-se “Nevermore” e trata-se da mais bonita declaração de amor que tive oportunidade de ler. Naturalmente que esta é também a minha forma de homenagear um dos maiores nomes da literatura portuguesa, ao qual sabe sempre bem regressar:

“O homem tirou os seus mistérios do sofrimento. O sofrimento é demiurgo e inventou os espectros, as almas penadas, os bons e risonhos espíritos «l’hòtel inconnu» dos espiritistas. Caprichoso e desconcertante. Ele e a tristeza ergueram ao céu as catredais.
Chove; a festa dos defuntos, fiéis e infiéis, já lá vai; a terra vestiu-se toda de verde, que é o seu luto pesado; o céu cobriu-se de névoa, que são os seus crepes. O homem desfazer-se-á em pranto de sua alma e de nada lhe valerá, Nevermore”.

Aquilino Ribeiro, “Nevermore” in Aquilino Ribeiro – Um escritor confessa-se, Lisboa, Betrand Editora, 2008, p. 332.

 

Autor: Renato Nunes

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