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A arte de não saber e o luxo de não prestar contas. Autor: Fernando Tavares Pereira

Instalou-se em Portugal, ao longo das últimas décadas, uma peculiar filosofia da irresponsabilidade. Um modo quase ingénuo — mas profundamente nocivo — de tratar a coisa pública como se fosse uma extensão doméstica da vaidade, do compadrio ou da ambição. Recruta-se para os cargos quem não sabe, não estudou, ou não tem experiência alguma — mas está disponível. Multiplicam-se lugares e duplicam-se funções, quase sempre em nome de um serviço público que, ao fim de pouco tempo, já não serve senão os seus próprios servidores.

Não é exigido conhecimento técnico, nem memória da função, nem sequer prudência na decisão. Para muitos cargos públicos, basta aparecer, ter algum cartão, pertencer a um círculo. A excepção, hoje, é o gestor competente. Tornou-se raro o autarca ou o dirigente que pense primeiro nas necessidades da população e só depois nas suas conveniências pessoais ou partidárias. É raro, mas não impossível. No entanto, não devia ser assim. Em qualquer empresa — pública ou privada — a regra deveria ser simples: quem decide, deve saber. E quem lida com dinheiros públicos, deve ainda mais: prestar contas.

Um dos fenómenos mais escandalosos, e silenciosamente aceites, é o das licenças sem vencimento, sobretudo em áreas como a educação. Centenas de professores abandonam as escolas, mas mantêm o seu vínculo, invisível e intocável, enquanto ocupam cargos políticos ou administrativos em câmaras, organismos regionais ou outras instituições públicas. Quem os substitui? Um contratado, quase sempre precário, sem garantias, sem horizonte e sem dignidade. Há escolas que se tornam centros de rotação e incerteza. Há alunos que mudam de professor como quem muda de estação do ano. E há professores que trocam o quadro-negro pela cadeira confortável do gabinete, ao abrigo de uma lei que permite tudo e não exige nada. É urgente pôr fim a este estado de coisas e resolver a problemática da escassez de determinados profissionais nos seus devidos locais.

Onde param as centenas de milhões de euros provenientes da Comunidade Europeia que entraram em várias instituições, em particular nos municípios?

Já propus, e repito: a licença sem vencimento deveria ter limite. Cinco anos. Depois disso, cada um que escolha. Ou regressa ao lugar de origem, ou assume em definitivo o novo caminho. A democracia também vive de regras. E a função pública não pode ser um parque de estacionamento de carreiras paralelas.

Há ainda uma questão maior, estrutural, que continua por esclarecer: o destino de centenas de milhões de euros, sobretudo dos que resultaram da entrada de Portugal na Comunidade Europeia. Quanto dinheiro entrou em cada município, em cada freguesia, em cada instituto? Quanto foi efectivamente aplicado no desenvolvimento local, na melhoria da vida das pessoas, na correcção das assimetrias regionais? Não seria difícil saber. Bastaria uma comissão abrangente, séria, não politizada, dotada de meios e vontade, para apurar dados, publicar mapas, dar contas ao país. Mas preferimos o nevoeiro. Preferimos o silêncio, as comissões para verificaram alguns custos. Mas ninguém se preocupa com uma comissão abrangente para que todos os municípios e outros institutos dessem conta de todo o dinheiro que receberam e onde foram investidos.

É pena. Não porque falte dinheiro — Portugal já recebeu muito, imenso. Mas porque falta responsabilidade. Falta escrutínio. Falta, em suma, essa virtude cada vez mais rara: o pudor. O pudor de decidir mal com o dinheiro dos outros. O pudor de não saber e, ainda assim, querer mandar. O pudor de falhar — e não prestar contas. E devo dizer que não sou contra a diversão e que os outros se divirtam. Mas com ponderação para que não faltem verbas para certas infra-estruturas. Mais uma vez, não terei qualquer dificuldade em discutir estes problemas, cara a cara, onde e com quem for preciso.

 

 

Autor: Fernando Tavares Pereira

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