Fomos pela licores e “ descobrimos” a bordadeira, a laica que preside à celebração da Palavra ao Domingo e administra a Comunhão na Igreja, a tesoureira da Junta de Freguesia do Ervedal da Beira e, naturalmente, a esposa e dona de casa que reserva tempo para ajudar no negócio da família.
Não há exagero: o licor “do outro mundo” é um verdadeiro néctar dos “deuses”! Houvesse produção em quantidade para ganhar mercado, e certamente não faltariam aderentes pelo palato agradável! Como se trata de um produto cem por cento natural para consumo caseiro, não há volta a dar: é assim que a mini produção vai continuar porque não são utilizados conservantes e os prazos de validade obviamente são curtos. As garrafinhas com as diversas especialidades dos licores da Alda Monteiro não chegam para as encomendas, que é como quem diz, para degustação de uns quantos felizardos.
-“ A pedido do Carlos Portugal, quando era presidente da Câmara, levei pela primeira vez à feira do queijo de Oliveira do Hospital doze licores – conta Alda Monteiro. Foi a partir daí que fiquei a ser conhecida como artesã, embora não fosse recente essa particularidade”.
Perante o agrado – insisto – de quem saboreia as suas especialidades, gente influente sugeriu a comercialização do produto, prontamente recusada:
-“Gosto do trabalho artesanal, deste e de outros; possivelmente não haverá quem continue com estas actividades, a minha filha tem a sua vida (é engenheira geóloga), enfim, por isso… mas tenho pena que as nossas tradições fiquem pelo caminho”.
Licores e bordados como se fossem "retratos"
A grande paixão da Alda Monteiro, afinal, são os bordados, que faz desde os 16 anos, e não os licores. Das suas mãos “nascem” peças lindíssimas que surpreendem pelo requinte do pormenor, há quadros de cores harmoniosas, pendentes ricamente trabalhados e tudo o mais que esteja associado à arte das linhas. Bordar as iniciais do nome de pessoa próxima para lembrança em data adequada, é “retrato das suas mãos” com dedicatória… “
– Bordar foi sempre o meu escape, até nos momentos aborrecidos da vida. Em criança, a minha mãe, se me via triste, aconselhava-me nesse sentido. Refugio-me ainda hoje nos bordados, é verdade.
“Julgo que herdei da família o gosto e o jeito; a minha mãe era modista, o meu pai alfaiate, e tinha duas tias com o curso de corte e bordados – foram elas que me estimularam e foi com elas que aprendi a bordar. Faço as minhas peças com amor: é a sintonia entre o movimento do pedal da máquina e a acção das mãos que estimula a minha sensibilidade”.
Póvoa de S. Cosme, onde reside, é um lugar aprazível e acolhedor:
– “Não há desemprego; diz Alda Monteiro”:
– “Todos temos um pedaço de terra para cultivar, trabalha-se muito, talvez por isso exista harmonia entre a população, pouco mais de uma centena de pessoas; no concelho deve ser a única terra onde existem seguidores das Igrejas Católica, Adventista do 7º Dia e Jeová; não há conhecimento de qualquer divergência. Somos todos cristãos, respeitamo-nos. Como o nosso padre (da Igreja Católica) só vem a S.Cosme uma vez por mês, ajudo na Igreja como posso; tirei um curso laico que me permite presidir à celebração da Palavra e administrar a Comunhão, o que faço com Fé e prazer. Posso garantir, sem receio de errar, que existe entreajuda comunitária, e mesmo na política partidária não há conflitos: cada um respeita o outro para ser respeitado”.
O entusiasmo com que a “mulher dos sete ofícios” envolve as palavras é extensivo à sua acção, enquanto elemento da Junta de Freguesia.
-“ Na verdade, faço parte da Assembleia de Freguesia do Ervedal há vinte anos, sempre com o mesmo empenho, e também aqui procuro desempenhar as funções para que me escolheram com rigor e dedicação – não sei estar na vida de outro modo. Não me parece que o povo esteja descontente com o trabalho do nosso Executivo, mas admito que nem tudo é feito como desejamos, dados os condicionalismos normais de uma Junta como esta. Fazemos o que podemos”…
Para Miguel Torga, “quem faz o que pode, faz o que deve” – é o caso!
Da conversa ficam vários apêndices por contar – dos pequenos “segredos” no fabrico dos licores às suas convicções políticas – outra herança familiar que lhe ficou do avô Manuel Pais dos Santos, artista marceneiro de Meruge. Conta:
– “Infelizmente, faleceu antes do 25 de Abril e eu tive pena que ele não tenha assistido à festa nesse dia. Pouca gente sabe do seu entusiasmo por uma mudança política no nosso País. Nesses tempos difíceis, o meu avô reunia em segredo com alguns dos seus amigos – alguns deles ainda vivos – onde se incluía o dr. João Almeida Santos, veterinário de Meruge, para discutirem a situação do País; às vezes ouviam a BBC – eu própria tinha um rádio escondido debaixo da cama que era usado para esse fim”…
Carlos Ramos