Outra efeméride, também ela muito grata para mim, é a do nascimento de Luís Vaz de Camões, em Janeiro de 1524, (não discuto o dia certo), faz 500 anos.
Meio milénio é muito tempo, excepto para aqueles que “Por obras ´valerosas´ se vão da lei da morte libertando” . Assim escreveu Camões e uma tal proposição – premonitória – ajusta-se-lhe perfeitamente.
Camões cantou de si próprio “ficasse a vida pelo mundo em pedaços repartida – aqui me achei gastando uns tristes dias”. Foi soldado português na Ásia e em África e chegou a entrar em combate do que até resultaram ferimentos tornados “célebres” como a perda do seu olho direito.
Homem profundamente culto com espírito renascentista – clássico – também se “chamuscou” em paixões várias e sofreu com infortúnios da vida até acabar com o corpo enterrado em vala comum enquanto o seu espírito de artista enorme já voava para a eternidade. Os quinhentos anos entretanto transcorridos “apenas” são uma etapa dessa viagem.
Como poucos alguma vez o fizeram, Camões dominou o material linguístico – o Português – de que dispunha para trabalhar os seus poemas e outros escritos – também foi dramaturgo e escreveu “cartas – estilo epístolas” mesmo em verso – e apurou e organizou esse material linguístico elevando-o a níveis cintilantes sem deixarem de ser laboriosos e, não raras vezes, de intrincada semântica. Dá muito prazer ler Camões e também dá trabalho…
De facto, mais do que a sua vida “complicada” que o foi – em que o homem sofrido estava muito longe de ser um mito – impõe-se a sua magnífica obra.
Artista de um talento sem medida mas com muita conta que com “engenho e arte” ajudou decisivamente a construir a nossa Língua.
Aliás, neste capítulo sempre me lembro de um quase contemporâneo de Camões, um dos grandes mestres da nossa Língua e por sinal “brasileiro” por devoção e obrigação – o Padre António Vieira. Pois que nos diria/escreveria ele hoje ? Que formidáveis sermões não pregaria ele também contra um tal “novo acordo ortográfico Luso-Brasileiro” ?…
Mas regressando a Luís Vaz, a vida dele dava um filme dramático – desejavelmente melhor que um filme já antigo que conhecemos – em que a dureza da sua vida contrasta (brutalmente) com a beleza ágil da sua verve, alimentada pelo domínio da Língua e por uma sensibilidade apuradíssima. É a arte camoniana a sublevar o drama ou a elevá-lo a uma categoria diferente, quase “agradável” mas longe de ser masoquista.
“O dia em que nasci ´moura´ (morra) e pereça” – abre o soneto que contém a dor, o drama, a desesperança, a “fossa pessoal”, mais pungentes que conheço, alguma vez ditas por alguém, em algum lado ! Até me deixam de certa forma inibido em assinalar o mês do nascimento de Camões, que fujo ao dia…
Tentaram “matar” em nós o amor nascente pela arte camoniana. E hoje ?…
Faço parte daquelas gerações “infelizes” em que, pelos nossos 15 anitos, a Escola da época tudo fazia, por um lado, para transformar Camões num símbolo, manipulado, do regime fascista da época – da “raça” – como nos era impingido e em que, por outro lado, quase conseguia “matar” em nós algum amor nascente pela obra camoniana ao impor, a seco e generalizadas, aquelas autênticas cretinices, tipo a da “cacofonia” (sonora) existente no famoso e “fermoso” soneto do “alma minha gentil que te partiste” e, pior ainda, nas “indigestas” e infindáveis “divisões das orações” em muitas das estrofes de “Os Lusíadas”. E como “há males que vêm por bem”, um tão “chato” quanto inútil exercício gramatical não se aplicava ao episódio sublime de “A Ilha dos Amores” – em “Os Lusíadas” – pela simples razão que os censores do regime o retiravam do programa obrigatório por conter “cenas” que eles, grandes bestas, consideravam impróprias apesar de, para quem ler (como eu) esse episódio, possam constituir do melhor, na arte da escrita e da poesia, alguma vez escrito, em algum lado, seja lá por quem for.
– “Ó que famintos beijos na floresta. E que mimoso choro que soava. Que afagos suaves, que ira honesta. Que em risinhos alegres se tornava!” – comungavam os amantes enlevados na arte e no movimento do seu amor feito como alto índice físico (sexual) embora também de uma qualidade superior.
De uma outra dessas estrofes, não resisto a transcrever dois dos seus últimos versos – “Mais vale experimentá-lo que julgá-lo — Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo”. Num forte contexto imbuído de sexualidade “à solta”, contexto tratado com muita arte por Luís Vaz, estes dois versos, considero, sintetizam, sábia e magistralmente, o acto do amor físico/sexual no caso entre um homem e uma deusa feita mulher. Aqui, com a particularidade de Camões ter sido um filósofo-platonista, nestas matérias. Filosoficamente pode tê-lo sido mas, na prática do amor físico, também deve ter sido um experimentador sábio – “C´um saber de experiências feito” – e muito agradado. “Mais vale experimentá-lo que julgá-lo” – pois claro que eu também concordo…
Posições recentes elaboradas por estudiosos – que muito devem ser respeitados – dizem-nos que “Camões foi um homem do seu tempo” o que é materialmente verdade. Mas com a sua arte, Luiz Vaz também esteve à frente do seu tempo e da ideologia dominante à época. Matérias em que o episódio de “O Velho do Restelo” – em “Os Lusíadas” – é exemplo exemplar, digamos assim : – “Ó glória de mandar ! Ó vã cobiça – Desta vaidade a que chamamos Fama ! Ó fraudulento gosto que se atiça” – são falas muito críticas e por assim dizer, “fora da época”, que Camões põe na boca do “Velho do Restelo” e por este proferidas perante a propaganda “oficial” promovida pela largada do Tejo das naus do grande “herói” em “Os Lusíadas”, o marinheiro descobridor da Índia, Vasco da Gama… Notável e lúcida crítica, muito, muito à frente da sua época ! Mesmo muito à frente da actual ideologia dominante… Aliás, todo o episódio de “O Velho de Restelo” é uma tremenda inovação camoniana no esquema estrutural das anteriores “epopeias clássicas”. É mesmo uma inovação surpreendente tendo em conta a construção ideológica, nuclear, de “Os Lusíadas” porque contém um notável e único “exercício de crítica”, livre e aberta, em relação à doutrina reinante. Bravo Camões que não deixaste de exprimir um juízo tão eminentemente crítico com que “desmontas” e pões a nu a essência das ditas “Descobertas Marítimas” e afins !
E se o “épico” camoniano é magistral, o bucólico e o lírico são notáveis. E se o primeiro é mais encorpado, os segundos têm muita alma.
Voltemos aos “Os Lusíadas” para apreciarmos as autênticas preciosidades líricas que são os episódios do “Estavas linda Inês posta em sossego. De teus anos colhendo o doce ´fruito´ (fruto)” e do “Entrava a formosíssima Maria…e seus olhos em lágrimas banhados” que sendo distintos no posicionamento pessoalizado em que o Poeta se coloca perante as duas Mulheres – são convergentes na sensibilidade aplicada pelo Poeta na escrita respectiva. Pura arte.
Sim, viva Luís Vaz de Camões e sua arte ! Viva a Língua Portuguesa !
João Dinis, Jano