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Trump, Miguel Esteves Cardoso, a decadência ocidental e a Guerra. Autor: Renato Nunes

Donald Trump não foi e não é um simples acaso trazido por ventos imperscrutáveis. Se subsistissem dúvidas, a sua recente reeleição para Presidente do país mais poderoso do mundo ajudar-nos-ia a dissipá-las. A este respeito, o mediático cronista Miguel Esteves Cardoso editou no passado dia 11 de Dezembro um texto intitulado “Como se compram votos”, onde deixou registadas as seguintes palavras:

“Investigava eu um dos labregos inteligentes que agora estão na moda nos Estados Unidos, de nome Theo Von, quando dei com uma entrevista com Donald Trump. Vi só o bocadinho que me interessava — aquele em que falam de tabaco, álcool e droga, claro —, mas fiquei impressionado com a paciência e a atenção de Trump. […] Trump é um político moderno. Discursava durante horas, deixando que as multidões, grandes, médias ou diminutas, se dispersassem à vontade. Falava do que lhe apetecia, dizendo o que não devia, defendendo-se e elogiando-se obsessivamente, aborrecendo toda a gente. […] Numa palavra, trabalhava. Estava lá. Sabia-se o que pensava sobre tudo. Era chato. Não se ia embora. Não escondia os piores defeitos. Não escondia nada. Compare-se com Kamala Harris, elitista e distante, tentando sempre dizer o mínimo possível. […] Foi mais moderno. Foi mais humilde. Foi mais esperto” (Público, p. 5).

A citação é, por certo, demasiado extensa, mas foi a forma que encontrei para (depois de me beliscar) confirmar que, de facto, Miguel Esteves Cardoso escreveu isto. Nem de propósito, há alguns meses, concluí a leitura do best-seller Como escrever, do referido cronista, que na badana é apresentado como sendo o “primeiro influenciador do país”, autor “de uma obra que abarca todos os géneros”. Pese embora o facto de o referido livro conter algumas sugestões interessantes, desde logo para aqueles que não escrevem e querem começar a fazê-lo (uma preocupação louvável), alguns dos conselhos traduzem bem a idiossincrasia do cronista: “O conteúdo do que escreve é irrelevante” (ob. cit., p. 79); “Quando olho para os conselhos que se dão a quem quer escrever, parecem-me todos excelentes conselhos para nunca mais escrever nada na vida.

Um desses conselhos, é «ler, ler, ler» ou, pior ainda, «ler os bons autores». […] A melhor maneira de inibir quem escreve é pô-lo a ler bons livros ou, pior ainda, livros muito bons” (ps. 113 e 115). Como se fosse possível, pasme-se, escrever sem ler de um modo quase obsessivo…

Leitor assíduo que sou do Público, nomeadamente desde o final da década de 90, ainda me recordo da excitação que inundou as páginas do meu jornal de referência quando, já numa fase posterior, se anunciou que Miguel Esteves Cardoso (o autor da letra da música “Foram cardos, foram prosas”, interpretada, de um modo magistral, por Manuela Moura Guedes) iria passar a ser um cronista “residente”. Segundo se dizia, todos queriam escrever como ele. Era e ainda hoje é vislumbrado como uma espécie de guru, que aproveita os assuntos mais banais do quotidiano para nos vender (enquanto cronista e escritor profissional) lições superficiais de gastronomia, bebidas e amor (a sua mulher “Maria João” é presença habitual nas suas crónicas).

Miguel Esteves Cardoso parece, pois, gozar de um certo estatuto de imunidade (em bom rigor, terei de acrescentar que em Portugal poucos textos motivam um efectivo debate de ideias). À semelhança de Trump, Miguel Esteves Cardoso é, na verdade, o reflexo de uma época em que a forma, a imagem, se sobrepõe ao conteúdo. Por um lado, a entrevista que concedeu a Manuel Luís Goucha, no pretérito dia 28 de Novembro (TVI), é indiciadora desse profundo vazio cósmico e, por outro lado, as suas levianas palavras de elogio dirigidas a Paula Pinto Pereira, que forjou documentos, para, durante cerca de 3 décadas, se fazer passar por professora de Matemática (e para progredir na carreira) traduzem um ataque aos mais elementares alicerces de uma sociedade justa: “Paula Pinto Pereira não falsificou os documentos para enganar os outros. Exigiram-lhe esses documentos para ela poder dar aulas e ela, como queria dar aulas (e claramente nasceu para dar aulas), foi — por assim dizer — obrigada a falsificá-los” (“Viva, Paula Pinto Pereira!”, Público, 23/09/2024).

Lamento dizê-lo, mas o rei vai mesmo nu. Apesar de todo o mediatismo associado, Miguel Esteves Cardoso limita-se a escrever bem (ou seja, os seus textos lêem-se sem necessidade de grande esforço), mas isso não me basta para ansiar reencontrá-lo diariamente num jornal de referência como é o Público.

Em sentido oposto, intelectuais como Onésimo Teotónio Almeida nem sempre têm a oportunidade de divulgar as suas ideias nos principais fóruns nacionais. É, de resto, lamentável que a extraordinária obra Diálogos Lusitanos tenha uma divulgação tão restrita. Para além das profundas reflexões literárias, filosóficas e culturais do autor açoriano, que reside há cerca de 50 anos nos EUA, as suas palavras a respeito de Donald Trump (em sentido oposto às de Miguel Esteves Cardoso) deveriam fazer-nos saltar da cadeira:

“Trump vive, ou pretende viver, num mundo irreal. Sabemos claramente que ele tem consciência de que muitas das suas afirmações são falsas. Ele próprio revelou essa sua tática. Há inúmeras provas disso. Quem é incapaz de aceitar a realidade tal como ela é e exige que todos aceitem que ela seja como ele quer que seja não pode ser o líder de nenhuma instituição, muito menos de um país com as responsabilidades que os EUA têm no mundo. Hitler foi assim. Um fanático ignorante. Como é possível ter um monstro desse calibre à frente dos destinos de uma nação?” (Onésimo Teotónio Almeida, ob. cit., pp. 284-
-285).

No século XXI, escolher entre Donald Trump e Kamala Harris deveria ser uma opção relativamente fácil para qualquer defensor da democracia. Infelizmente, a actual falta de ética e a generalizada ausência de uma cultura científica (as redes sociais ajudam a proliferar os novos monstros medievais) tornam-nos cada vez mais vulneráveis aos ataques dos ditadores e dos vendedores da “banha da cobra”. É uma pena que não consigamos perceber a enorme diferença que existe entre a densidade cultural de Onésimo Teotónio Almeida e a verborreia retórica de Miguel Esteves Cardoso, mas essa incapacidade generalizada também reflecte a tragédia social, política, educativa, cultural e ética em que vivemos submersos.

A porta para o regresso dos totalitarismos ou mesmo para uma guerra nuclear à escala mundial irá escancarar-se perigosamente com o retorno de Trump à Casa Branca, em Janeiro de 2025. E a culpa também é nossa e da nossa incomensurável ignorância. Porque, afinal, continuamos a preterir os intelectuais, que odiamos, em detrimento dos sofistas, que idolatramos; porque, enquanto consumidores vorazes, continuamos a preferir a parafernália tecnológica (com a Inteligência Artificial à cabeça), em detrimento dos livros científicos e da imprensa séria. A actual crise do mundo ocidental não radicará, em grande parte, nestas questões?

 

 

 

Autor: Renato Nunes

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