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“Crónicas de Lisboa” : Eu, Quem Sou? Autor: Serafim Marques

“Crónicas de Lisboa” : O Vazio do Pós Festas Natalícias. Autor: Serafim Marques.

Neste Natal, S. Pedro bafejou-nos com temperaturas amenas e soalheiras, mais parecendo uma primavera extemporânea. Então o dia pós Natal foi um dia radiante de sol, permitindo a muitos cidadãos e muitos turistas usufruírem desse privilégio. Fui daqueles que ousei deixar o meu bairro, onde parecia pairar um “ar de tristeza” e viajar até à beira-rio (mar), onde poderia encontrar, o sol de inverno e espraiar os já muito vistos horizontes, mas sempre diferentes porque diferente é sempre o nosso estado de alma. Escolhi um dos destinos e a opção tomada recomendava mesmo a utilização dos transportes públicos, em vez do automóvel. Planeei, sem grande rigor, o percurso que iria fazer, tentando descobrir coisas novas, apesar dos cinquenta e dois anos a viver na cidade, e revisitar espaços renovados que vão embelezando a cidade, sem , contudo, esta deixar de exibir muitas das coisas que nos deveriam envergonhar, como seja prédios devolutos e a ameaçar ruínas em zonas nobres e turísticas, cenários idênticos a muitas das nossas vilas e cidades, cujos centros históricos mais parecem ruínas duma qualquer guerra ou bombardeamentos. Fiquei surpreendido com a imensidão de gente, de várias idades e nacionalidades que passeavam pela zona ribeirinha e pela baixa da cidade e eu, turista solitário na minha cidade, ia observando, como se fosse a primeira vez, e fotografando, ao mesmo tempo que sentia alegria, mas também uma certa vergonha pelas coisas feias que ofuscam as nossas belezas.

Cansado e porque estava na hora do regresso a casa, preparava-me para esperar pelo autocarro, quando deparei com um antigo colega da faculdade que, como eu, tinha descido até à baixa para matar saudades dos tempos em que ali trabalhávamos, porque era ali o centro de negócios da cidade, hoje deslocado para várias zonas novas, deixando a baixa numa espécie de cidade morta. Depois do olá como estás e tens passado, logicamente teria que vir à baila o tema das festas de Natal e notei um certa tristeza na voz do meu amigo. Desafiei-o a abrir-se e, então, lá foi dizendo que, afinal, este dia de Natal tinha sido complicado para ele e quase que se arriscou a passar o dia sozinho, porque esta nova realidade dos modelos de famílias alterou-se profundamente, isto é, famílias reagrupadas, monoparentais, uniões de facto, etc, que obriga os diversos elementos (netos, filhos, genros, noras, sogros, ex-sogros, novos cônjuges, etc) a gerirem, às vezes com dificuldade, as presenças nos diferentes lares, por força dos  cruzamentos conjugais e familiares, por vezes, geradores de conflitos familiares, porque a homogeneidade tornou-se  mais difícil. Em muitas ceias ou almoços de Natal o stress pode ser difícil de gerir e nalguns emergem conflitos latentes.

Mas voltando aquilo que o meu amigo ia contando, dizia ele que o que o salvou da solidão em dia de Natal foi lembrar-se de que um seu amigo, também ele divorciado, tinha um problema semelhante porque desejava almoçar com os seus filhos adolescentes e não o podendo fazer na casa da sua ex-mulher, já a viver uma nova relação, também não o poderia fazer na casa onde vive com a nova companheira, porque os filhos não aceitam essa relação.Tinha que encontrar um restaurante aberto no dia de Natal e, para isso, percorreu, uns dias antes, uma parte significativa da cidade à procura dum que estivesse aberto nesse dia e ali pudesse levar os filhos para o almoço de Natal. Acabou por encontrar um, bastante simples, e lá foram os quatro almoçar, cumprindo um dever paternal.

Depois da despedida dos filhos, ficaram ambos os amigos a falar dos velhos tempos, mas o tema natal também foi abordado. Desabafou-lhe o amigo que a refeição lhe “caiu mal”, talvez porque as lágrimas invisíveis, aquelas que são geradas na alma, lhe “azedaram” o estômago, porque, disse com mágoa, o almoço não terá despertado entusiasmo nos filhos, porque as roturas familiares, por divórcio, são feridas difíceis de sarar. Continuou o meu amigo a dizer que no período de Natal, com um stressante frenesim, tentamos fazer crer, aos outros e a nós mesmos, que é a festa da alegria, da família, do amor, do perdão, da solidariedade, etc . Pura hipocrisia, porque é um período para dar largas ao consumismo, ao materialismo, às gulas gastronómicas e ao faz de conta de falsos perdões e amizades, porque o espírito genuíno do Natal assenta noutros valores que se foram perdendo. Como disse o Papa Francisco, há católicos incoerentes, porque se dizem cristãos, mas vivem como pagãos, porque o Natal está transformado numa festa pagã, pois não assenta nos valores originais da família, muito bem “retratada” pelo presépio, paradoxalmente, agora muito na moda, talvez para contra balançar essa carga pagã do Natal, mesmo nos seio dos cristãos. Por isso e antes que se percam ainda mais os valores que vão resistindo, é urgente que o espírito de Natal deixe de ter esse cunho vincadamente mercantilista, acabando por sermos vítimas desse culto do consumismo, porque sofremos com a ansiedade da festa pagã e depois arriscamos a sentirmos um vazio posterior. Essa frustração, para não lhe chamarmos mesmo revolta ou egoismo, é também visível em muitas crianças, para muitas famílias e onde elas existem, o centro do Natal, mas cuja mente já foi por nós pervertida.

Acabei por compreender a tristeza revelada pelo meu amigo, que só é uma doença se ela for causa e efeito em simultâneo. Ela faz parte da lista das emoções humanas e estar triste pode até ser salutar porque nos permite dar valor a certas coisas que não temos ou já tivemos e perdemos. Ademais, ela molda os nossos sentimentos humanos e só é doença se for persistente e ou patológica. Nesse caso, deve ser objecto de diagnóstico das causas e do respectivo tratamento nas área das “psico” (Psicologia ou Psiquiatria), conforme a gravidade da situação. Contudo, numa época em que vivemos o Natal apenas durante dois ou três dias, menosprezando, nos restantes dias do ano, os valores do natal, é um indicador de doença que urge curar, para defesa da humanidade, porque o Natal deve ser vivido o ano todo, nos valores que ele encerra. So poderemos viver normalmente o Natal, se o vivermos o ano todo.

Anima-te, disse-lhe, na despedida, porque a seguir vêm as festas da “passagem de ano”, com um cariz diferente, mas com a mesma loucura dos “faz de conta”, em vez de se aproveitar para fazer o balanço dum ano que acaba e projectar objectivos para o outro que começará. Haja “festas”, porque o povo gosta e o mercantilismo agradece, mesmo com a crise e o elevado endividamento de muita gente.

“Crónicas de Lisboa” : Eu, Quem Sou? Autor: Serafim MarquesAutor: Serafim Marques

Economista

 

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