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Fernando Namora e o Estado Novo

…as ideias de um artigo que escrevi anteriormente, aquando da publicação, pelas Edições MinervaCoimbra, da obra “Fernando Namora por entre os dedos da PIDE”.

O estudo em questão é da autoria de Paulo Marques da Silva (PMS) e está integrado na série “A repressão e os escritores no Estado Novo”, dirigida por Luís Reis Torgal.

O referido livro é o resultado de várias pesquisas desenvolvidas por PMS ao longo de quatro anos e encontra-se estruturado em quatro capítulos: I) Os primeiros caminhos: breve resenha biográfica de Fernando Namora; II) Fernando Namora e o movimento literário neo-realista; III) A censura e os escritores; IV) Os processos da PIDE/DGS de Fernando Namora.

Em anexo, o historiador PMS decidiu reproduzir alguns documentos existentes nos processos do escritor na polícia política, várias cartas do espólio particular de Fernando Namora e outras do espólio de João José Cochofel. São também reproduzidas algumas dedicatórias feitas por diversos escritores, como, por exemplo, Aquilino Ribeiro ou José Saramago, em livros que pertenceram a Fernando Namora e que, hoje, se encontram guardados na Casa-Museu deste autor, em Condeixa.

Diz-nos PMS que Fernando Namora tem cinco processos nos arquivos da PVDE/PIDE/DGS, sendo que, no seu total, estes integram quase 900 páginas de informações. Só a título de comparação, registe-se que Miguel Torga tem quatro processos na polícia política, que incluem 455 páginas de informações.

Ao embrenhar-se nos arquivos e contactar com as fontes policiais coligidas entre os anos de 1940 e 1973 (data da última informação), o historiador trouxe-nos à luz do dia vários aspectos particularmente interessantes que nos permitem, desde logo, surpreender a sanha persecutória do regime em relação ao escritor e ao cidadão Fernando Namora.

Tendo em consideração o estudo dado à estampa, os processos de Namora na polícia política são constituídos por recortes de jornais, correspondência remetida para o escritor (previamente interceptada pelos funcionários do regime) e exposições, apelos, representações e comunicados promovidos pela oposição e que Namora subscreveu. Os processos incluem também informações recolhidas por agentes policiais dispostos no terreno e algumas denúncias elaboradas por informadores da PIDE.

Apesar de nunca ter estado preso, situação que o distingue, por exemplo, de Miguel Torga, o autor de Retalhos da Vida de um Médico teve vários problemas com o “lápis azul” do Estado Novo: viu ser-lhe proibida a reedição das obras em 1966 e quando Manuel Guimarães pretendeu adaptar ao cinema o romance O trigo e o Joio a censura obrigou-o a realizar vários cortes. Desse facto nos dá conta Igrejas Caeiro, um dos actores que participou naquele filme: “Em relação ao filme O Trigo e o Joio, recordo-me de um aspecto curioso: o filme é a história de uma família alentejana de camponeses pobres que em determinado momento concretizam o sonho de poder comprar uma burra, para os ajudar na lavoura. Mas, entretanto, a filha do casal, uma miúda, começa a ter problemas de saúde e a propósito disso surge uma discussão entre a mulher e o marido, porque ela quer vender a burra, pensando que os problemas de saúde da miúda tinham a ver com a burra, e ele não quer. Então o homem conclui, dizendo: «está bem, temos que dar uma volta a isto». Pois essa simples frase foi cortada pela censura! Evidentemente que não passava pela cabeça de ninguém, ainda por cima naquele contexto, que essa frase significasse: dar uma volta ao regime. Mas assim não o entendeu a censura, que exigiu que fosse cortada aquela frase, o que obviamente teve que ser feito.

Neste filme houve ainda outras peripécias com a censura. No final do filme há uma personagem daquela família, que andava há muito transviada, e que regressa à terra. Há uma reconciliação na família, que acredita inclusivamente que a sua situação pode melhorar. O filme termina com uma imagem, por sinal muito bonita, do nascer do Sol, com os dois homens, o dono da burra mais o outro que andava transviado, a puxar a charrua, com o Sol a nascer. Pois por incrível que hoje isso nos possa parecer, a censura exigiu que aquela cena fosse suprimida, com o argumento de que se tratava de uma alegoria à pobreza em Portugal, por a charrua ser puxada, a braço, por dois homens!” (cf. Cândido de Azevedo, A Censura de Salazar e Marcelo Caetano, Caminho, Lisboa, 1999, pp. 268-269).

Além do que já foi anteriormente exposto, importa sublinhar que o romance A Noite e a Madrugada foi proibido de ser adaptado ao cinema, o livro Domingo à Tarde teria sido apreendido pela PIDE, de acordo com Francisco Lyon de Castro, o fundador das Publicações Europa-América, e a partir dos anos sessenta o Estado Novo terá mesmo tentado condenar Fernando Namora a uma espécie de “morte civil”. Este último facto pode ser comprovado pela leitura de uma carta interceptada pela PIDE, que tinha sido enviada a Namora, em 1967, pelo director do Jornal de Notícias, Nuno Teixeira Neves: “Como profissional de imprensa não me furto, de todo, a um certo remorso por pertencer a uma vasta máquina, comandada, nem sempre contra vontade, pela Censura, a qual, neste momento, como deve saber, está interessada em separá-lo, mais que nunca, do público, reduzindo ao mínimo o noticiário que lhe diz respeito e cortando as mais inofensivas prosas que o mencionem. A entrevista que teve a amabilidade de nos conceder há tempos foi completamente cortada e as restantes referências muito mudadas ou reduzidas.” (cf. Paulo Marques da Silva, Fernando Namora por entre os dedos da PIDE. A repressão e os escritores no Estado Novo, Edições MinervaCoimbra, 2009, p. 170).

Idêntica situação acabou, aliás, por ser denunciada pelo jornal Portugal Democrático, na sua edição de Fevereiro/Março de 1967: “Fernando Namora […] é vítima de medidas de repressão que atingem toda a sua obra. A Imprensa está proibida de publicar a mínima palavra, a mínima nota, sobre os seus romances, ou mesmo sequer, fazer publicidade de qualquer dos seus livros. O nome de Fernando Namora é até proibido de figurar em anúncios de obras de que é co-autor”. (cf. Paulo Marques da Silva, ob. cit., p. 169).

Embora alguns estudiosos considerem que Fernando Namora não pode ser considerado um autor neo-realista “puro”, como por exemplo Soeiro Pereira Gomes ou Alves Redol, a verdade é que Namora foi um dos grandes impulsionadores daquele movimento. Registe-se que ele é apresentado como o autor da ideia do Novo Cancioneiro e que esta colecção foi mesmo inaugurada com a sua obra Terra, editada em 1941. Ademais, a colecção Novos Prosadores iniciou-se também com um romance de Namora – Fogo na Noite Escura, editado em 1942.

Ao longo de sensivelmente 50 anos de vida literária, Namora publicou mais de 30 obras, repartidas entre a poesia e a ficção. Retalhos da Vida de um Médico é talvez um dos seus livros mais emblemáticos, aquele “em que os leitores mais imediatamente captaram o intenso pulsar de humanidade e o sentimento fraterno que percorrem toda a obra de Namora, identificando autor e narrador num mesmo médico que vive as dores, misérias e frustrações de uma população rural do interior esquecido de Portugal na década de quarenta”. (cf. Dicionário de História do Estado Novo, direcção de Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito, vol. II, Bertrand Editora, Venda Nova, 1996, p. 656).

Inspirado pelas suas experiências como médico no Alentejo, na Beira Baixa e em Condeixa, Namora escreveu a obra em questão, em 1949. Em Retalhos da Vida de um Médico, que conheceria uma segunda série em 1963, Namora denuncia, por exemplo, a miséria de um povo que para conseguir pagar ao médico, recorrendo ao sistema das avenças, tem praticamente de deixar de comer. E o contacto com o sofrimento desse povo acaba por imprimir à obra um humanismo e uma consciência cívica e fraterna difícil de encontrar na literatura nacional, como o leitor pode facilmente confirmar pela leitura da seguinte passagem: “Um homem morto. Uma realidade directa, que me tocava de perto. Tinha estropiado cadáveres na morgue; chegara a ver enfermos a morrer durante as lições nas enfermarias; vivia cercado de doentes, de misérias, de agonias. Mas tudo isso eram acontecimentos necessários para a lógica dos tratados. Esta morte dizia-me respeito. Conhecera o primo Lucas longe desse ambiente; era um homem, uma coisa viva e misturada nas recordações da minha infância; um ser pronto a sofrer, pronto à tortura e à felicidade. Os outros homens da enfermaria ou do necrotério não tinham para mim uma história, serviam para confirmar uma ciência.

Alguma coisa estava brutalmente errada. Haviam-me iludido, magoado. Recebia uma lição. Daí em diante sofreria até à angústia o que é ter uma vida nas nossas mãos, uma vida que nos é entregue: um misto de aventura, de responsabilidade e de desespero”. (cf. Fernando Namora, Retalhos da Vida de Um Médico, primeira série, 13.ª edição, Publicações Europa-América, Lisboa, 1971, pp. 52-53).

Se é verdade que há escritores que retratam a alma de um povo, ler Namora é reencontrar o Portugal do Estado Novo. Por outro lado, contactar com os processos deste escritor na PVDE/PIDE/DGS é surpreender, em pleno funcionamento, dois importantes pilares que sustentaram o regime português: a polícia política e a censura.

Na minha opinião, é fundamental que estes estudos ultrapassem o estrito círculo académico a que, maioritariamente, se encontram votados, de modo a que possamos conhecer, de um modo sério e rigoroso, o que foi o Estado Novo. Ainda que não possamos ignorar os importantes avanços historiográficos registados nesta temática, sobretudo, ao longo da última década, a verdade é que muitas outras investigações terão ainda de ser realizadas, pois, só para o leitor ter uma pequena noção do longo caminho ainda a percorrer, em 1974 o arquivo da polícia política portuguesa integrava cerca de três milhões de fichas individuais que correspondiam a um milhão e duzentas mil pessoas.

Numa época em que, um pouco à semelhança do que sucedeu durante a “Grande Depressão” dos anos 30, o desemprego atinge proporções dramáticas, com as inevitáveis consequências (a todos os níveis…) daí decorrentes, acredito que vale a pena recordar o ideário que esteve na génese do neo-realismo. É que, inexplicavelmente, os espíritos parecem continuar adormecidos; quiçá à espera que a arte rompa a tendência actual e assuma, novamente, um carácter social e uma postura mais interventiva, que ajude a gerar cidadãos… uma premissa, em meu entender, incontornável para dar outro significado à Democracia.

Renato Nunes

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