Home - Opinião - Povo sereno. Autor: Fernando Roldão

Povo sereno. Autor: Fernando Roldão

Hoje vou-me debruçar sobre um mito que quase todos encaram como um dogma, mas que no fundo, nem é uma coisa nem outra.

Diz-se que o povo português é de brandos costumes e que essa característica faz de nós pessoas pacíficas, ordeiras e sobretudo, submissas.

Será que isto é mesmo verdade ou será que nos andam a manipular para sermos de facto, macios, apáticos e cobardes, como condição sinequanon para agirmos como meninos de coro ou segundo a vontade velada de uma elite parasitária?

Recordo a manifestação de 9 de Novembro de 1975 no Terreiro do Paço, em Lisboa, onde o falecido almirante Pinheiro de Azevedo, primeiro ministro do VI governo provisório, do alto da varanda do ministério da guerra, gritava, em resposta a alguns tumultos no seio da manifestação, ”é só fumaça! o povo é sereno!” e não é que tem sido mesmo fumaça, até que esta se transformou num gigantesco incêndio, que para além de ceifar vidas humanas e animais, chamuscou a nossa economia, está queimando a nossa esperança de uma vida digna, minimamente civilizada e democrática, transformando o povo em espectador de um violento filme de terror.

Nem sempre fomos “cordeiros”, pois tivemos na nossa história, a verdadeira e não a romanceada, cidadãos corajosos e lutadores.

A manipulação, mais visível nestes tempos, já vem sendo incrementada há várias décadas, com resultados extraordinários, para alguns e desastroso para a maioria.

Há registos na nossa história de episódios, que provam que o povo é sereno, pois os actos cometidos foram da responsabilidade de grupos e seitas, que agiram em prol dos seus interesses políticos, económicos ou de poder, arrastando, por vezes o povo ingénuo nas suas macabras aventuras.

Relembro o episódio do levantamento de 14 de Maio de 1915, perpetrado contra o General Pimenta de Castro, que tinha sido mandatado por três meses e meio antes pelo presidente da república, Manuel de Arriaga para governar o país, pois o parlamento estava encerrado.

O resultado desta rebelião cifrou-se em cerca de 200 mortos e mais de um milhar de feridos.

O povo estava em casa e não foi o causador, pois a loja maçónica Jovem Turquia, também causadora da nossa entrada na primeira grande guerra., medida preconizada por Afonso Costa, foi a responsável.

No dia 17, estes senhores preparavam-se para entregar o poder a um novo governo, que seria presidido pelo líder do PD, João Chagas.

Nesse dia quando se encontrava na estação ferroviária do Entroncamento e quando se dirigia para Lisboa, procedente do Porto, foi atingido a tiro pelo advogado e senador, João José de Freitas.

Foi linchado, ali mesmo, por apoiantes do João Chagas.

O Zé, esse, como de costume, não foi ouvido, mas serviu de repasto dos canhões.

Quando da implantação da república, em 5 de Outubro de 1910, forças leais a ambas as tendências, envolveram-se numa batalha que causou perto de 60 mortos e perto de 6 centenas de feridos, mas o povo, simples e ordeiro, esteve ausente desses actos bélicos, continuando a ser sereno, apesar de alguns cronistas, jornalistas e outros, tentarem inclui-lo nestes levantamentos.

Portugal viveu, entre 1911 e 1912 incursões de grupos afectos à `Monarquia e à Republica, que para além de serem ou pertencerem a elites, tentaram aliciar o povo para que se juntasse a eles, mas mais uma vez, o Zé Sereno, ficou em casa.

As escaramuças continuaram por mais uns anos, com mais regularidade entre 1915 e 1925, mas sempre com o povo de fora, sentido na pele os efeitos dos caprichos e desentendimentos dos poderosos que pretendiam ficar no poder.

Tivemos um regicídio em 1908 e dois assassinatos de chefes de governo, mas não foi o povo que apertou o gatilho. Os poderosos, conquistavam assim o poder pela força e eram os actores principais de toda a trama.

Usaram os seus apoiantes, que cegamente, quiçá, hipnotizados, seguiam e executavam as ordens de quem não queria sujar as mãos com sangue.

O mais importante era impor vontades, nem que fosse pela força.

Hoje impõem as suas doutrinas, não pela força, mas pela manipulação, pela mentira e pelo compadrio jurado em reuniões secretas e em que o povo é tratado como rebanho.

Em 19 de Outubro de 1921, uma camioneta de caixa aberta, pertencendo à administração militar, transportando marinheiros e soldados, invadiu a casa do primeiro-ministro, vários membros do governo, cidadãos envolvidos na vida política, sendo todos sumariamente executados.

Elementos das forças militares e apoiantes dos políticos beligerantes, foram os executantes, instigadores para a matança que aconteceu, por exemplo na noite da camioneta fantasma, porque o povo, sereno, continuava isso mesmo,

Sempre as elites gananciosas e totalitárias lideraram estas carnificinas, utilizando alguns elementos ao seu serviço oriundos do povo.

Estes portugueses que assassinaram outros compatriotas, fizeram-no em nome de oligarquias e seitas, mas nunca como povo, pois foram usados.

Matavam, assassinavam e roubavam em nome dos outros, mas não o faziam, como ainda não o fazem hoje, em sua defesa, dos seus e dos seus bens.

Estranho povo, que é sereno, que gostam que o chamem disso e ainda o apregoam aos quatro ventos, manipulados, para que fiquem sossegadinhos no seu canto, vendo as guerras sentados no sofá e sem mexerem um dedo para actuar.

Estranho povo que se deixa destruir, a menos que seja o seu clube a ser roubado num “penalty” que o árbitro, grande malandro, lhe roubou a vitória, sendo que aí o caso muda de figura e vão todos, aos milhares para a rua, com tochas, com vontade de repetir a “noite sangrenta”, acabando por se envolver à estalada, pontapé e canelada, com outras claques ou polícia de choque.

Nas bancadas dos estádios do ópio, vociferam, gritam e insultam as famílias dos jogadores, quando falham e dos árbitros quando julgam contra a sua equipa.

Frustrações e gritos provenientes de revolucionários de café, que a fazer jus ao que debitam da boca para fora, os políticos que se cuidem, mas felizmente para estes, todas estas tiradas nacionalistas, não passam de meros desabafos de cobardes, comodistas e ignorantes, pois não conseguem perceber patavina do que se passa à sua volta, passou ou irá passar.

Estranho povo que quando chega o salvador, o líder contra as injustiças, as assimetrias injustas e o compadrio à mistura, eles iniciam uma tímida procissão, que invariavelmente acaba com o salvador, sozinho, abandonado à sua sorte e a sofrer na pele todo o ódio dos opressores

O povo é sereno, pois não tem poder nem meios para deixar de o ser.

O povo é sereno porque as elites assim o apregoam.

O povo é sereno porque gosta mais de futebol do que da sua família.

O povo é sereno, porque é comodista e ignorante.

O povo é sereno, porque é masoquista.

O povo está sentado no sofá, seguindo os pregadores da banha da cobra, verdadeiros arautos da desgraça dos outros.

O povo é sereno porque se lamenta, deixando de lado a sua energia para agir.

O povo é sereno porque não questiona directrizes obscenas e imorais.

O povo é sereno porque prefere ser vítima e adora lamentar-se.

O povo deixará de ser sereno, se pensar que a verdade é um triângulo, onde cada um dos lados defende a sua verdade e onde consta, também, no outro lado, a realidade!

 

 

Autor: Fernando Roldão

 

Texto escrito pelo antigo acordo ortográfico

LEIA TAMBÉM

Por favor, ajudem-nos. Autor: Fernando Tavares Pereira

Depois de ter chamado, em vários textos, a atenção do Executivo que se encontrava no …

Celebrar Abril, 50 anos depois. Autor: Renato Nunes

O ano de 2024 assinala o cinquentenário da Revolução de 1974 e os 500 anos …